Dificilmente uso o “Nossas” ou mesmo as minhas redes sociais para me pronunciar a respeito de assuntos pessoais ou expressar opinião sobre assuntos polêmicos. Às vezes acho que devia fazer mais isso rsrsrs e confesso: estou pensando na possibilidade!
Mas vamos lá! Nesta semana causou comoção nacional a história do menino Miguel Santana da Silva, de 5 anos, que foi deixado sozinho em um elevador pela patroa de sua mãe em um prédio do condomínio Pier Maurício de Nassau, em Recife e acabou morrendo após se perder no 9° andar do prédio, de onde acabou caindo.
Entenda o caso
A mãe de Miguel, Mirtes Renata de Souza, foi, a mando da patroa, Sarí Gaspar Corte Real, primeira-dama de Tamandaré, passear tinha saído com o cachorro dos patrões para passear em uma rua próxima ao condomínio e deixou o menino aos cuidados da patroa, que estava sendo atendida por uma manicure naquele momento. No momento em que caiu do 9° andar, Miguel procurava por sua mãe.
O final da história até o momento é o de que Sarí, a patroa, foi presa e solta após pagar fiança de R$ 20 mil. Ela está em liberdade provisória e a polícia investiga o caso como homicídio culposo ( quando não há intenção de matar).
A mãe, desolada, se manifestou nas redes sociais e na imprensa, lembrando dois fatores importantes.
Verdades
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O primeiro: a identidade da patroa não foi revelada num primeiro momento.
“Se fosse eu, a doméstica, estaria com a foto estampada em todos os lugares”.
Alguém duvida?
O segundo foi a falta de paciência da patroa com o seu filho.
“Ela confiava os filhos dela a mim e a minha mãe. No momento em que confiei meu filho a ela, infelizmente ela não teve paciência para cuidar, para tirar [do elevador] “.
Mirtes e Miguel são negros e a situação reacendeu a discussão sobre o racismo no Brasil.
Perguntas
- Se a criança fosse branca, seria tratada com mais atenção pela patroa da mãe?
- Em um país onde historicamentemente uma das únicas funções “que sobraram” para as negras após a abolição, lá em 1888, foi a de empregadas domésticas, quantos “Miguéis”, filhos de empregadas “do lar”, de faxineiras, de cozinheiras, já foram sacrificados?
A história do “Miguel” da minha família
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Em minha família tivemos “um Miguel”. Acredito que se nossas histórias tivessem sido registradas ao longo dos anos, descobriríamos muitos outros.
Meu bisavós, Luisa e Jorge Farias, moravam no 2° Distrito de Pinheiro Machado, no interior do Rio Grande do Sul. Nasceram logo após a abolição da escravatura e moravam em uma área de uma fazenda cujos senhores reservaram a ex-escravos e suas famílias. Algo tipo um “feudo”.
Tiveram 12 filhos e filhas. Uma delas era minha avó, Enedina Farias, nascida em 14 de junho de 1924. Ela cumpria a rotina da família: cuidar da casa, tratar animais, cozinhar no fogão a lenha, plantar, colher, lavar roupa no rio, cuidar dos irmãos menores.
E um desses irmãos um dia, “do nada”, caiu nas graças da patroa de minha bisavó. Ele tinha 8 anos.
A patroa um dia foi na casa da minha bisa com uma desculpa qualquer e gostou muito do meu tio. Simpatizou com ele, chegou até a brincar com a criança.
Dias depois voltou. Tinha gostado muito daquele menino! Conversou com a bisa, com o biso e com os seus filhos. Perguntou se podia levar meu tio avô para brincar com o seu filho, da mesma idade.
“Minha mãe autorizou, claro! Ficamos muito felizes que ele tinha caído nas graças da patroa e pensávamos que se ela continuasse gostando dele, quem sabe ele poderia estudar até a quarta série e trabalhar lá na casa dela, na cozinha ou como faxineiro. A gente sempre dizia para ele ser educado e se comportar “, contou minha avó, quanto eu tinha uns 13 anos.
E a família continuou feliz! Meu tio avô foi por outras vezes para a casa da patroa. Que coisa boa! Sempre levado com muita alegria e carinho pela ela.
A questão é que o “futuro” dele acabou pouco tempo depois. O menino começou a passar mal, ter tosse frequente e …minha bisa descobriu que ele estava com tuberculose.
Mas se ninguém ali tinha tuberculose, onde ele tinha pego a doença, que é transmitida por uma pessoa com a doença?
Alguém aqui adivinha?
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Pois bem, minha avó me contou que logo depois descobriram que o filho da patroa, aquele com quem meu tio era levado para brincar, também tinha tuberculose. E estava em estado grave já.
Meu tio também ficou em estado grave. Ele morreu de tuberculose. O filho da patroa morreu também, da mesma doença, claro!
E foi quando as duas mortes ocorreram simultaneamente, ao conversar com empregadas que trabalhavam na casa da patroa, que minha bisavó soube da grande verdade.
“As empregadas contaram que quando meu irmão chegava lá, a patroa colocava ele no mesmo quarto do filho doente. Fazia que ele comesse no mesmo prato que ele, usasse os mesmo talheres, copos, guardanapos…até que meu irmão também ficasse com tuberculose também” , relatou minha avó, com semblante de quem está lá no passado. Eu vi uma dor tão grande no rosto dela! Doeu em mim também!
Na sequência, minha bisa, o “biso” e seus filhos receberam novamente a visita da patroa. Muito “adorável” ela falou:
“Fiz isso porque se eu, branca, estava perdendo um filho, nada mais justo, que vocês, negros e inferiores, perdessem um filho também”.
Ninguém falou nada e ela foi embora para a casa dela. Meus bisas não tinham para onde ir, ainda mais com tantos filhos, alguns pequenos. Para onde iriam? Do que iam viver? O que iam comer? Onde iam morar?
Então, toda minha família continuou naquele lugar. Minha bisa, meu biso e seus filhos ainda precisaram servir à “Senhora” e sua família.
Lavaram, passaram e dobraram suas roupas e a de sua família. Limparam a casa dela muitas vezes. Em silêncio. Calados. Sem poder chorar ou gritar. Eles só tinham essa alternativa.
Lá eles ficaram até o filho caçula ter idade para trabalhar. Então, se mudaram para Rio Grande, cidade portuária, a primeira cidade do estado do Rio Grande do Sul.
Minha avó conheceu meu avô, Clodomiro de Oliveira. Eles se casaram e tiveram três filhos: Vardelem, Maria Marlem (minha mãe) e Terezinha Loeci.
Minha mãe ficou esquizofrênica aos 23 anos, num dos níveis mais críticos, tristes e trágico da doença.
Como esse fato, por incrível que pareça, influenciou minha educação
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Meus avós me adotaram quando eu tinha 18 meses. Desde que me entendo por gente lembro da minha avó repetir, juro, pelo menos umas cem vezes por dia, que não era para eu tocar em “babujo” de ninguém.
Quando entrei para a escola, no Pré Jardim na Escola Agnela do Nascimento, era moda, as crianças em especial, tomarem refrigerante em garrafinhas de vidro. Era “a” experiência.
Lembro que também era moda um coleguinha comprar uma daquelas garrafinhas na cantina e dividir com os demais. As garrafinhas passavam de boca em boca.
Nunca aceitei um golinho daqueles. Nunca aceitei comer no talher de outra pessoa que não fosse eu. Nunca comi no prato de ninguém.
Eu sempre lembrava das milhares recomendações da minha avó. Ela falava tantas vezes para eu não aceitar comer no “babujo” de alguém que na minha consciência de criança eu pensava que se eu desobedecesse, ela ia adivinhar de alguma forma.
Nada pessoal, juro, mas até hoje…
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Até hoje meu inconsciente está marcado pelas recomendações dela. Tanto que é difícil eu tocar no “babujo” de alguém. E não é por mal nem nada pessoal, é porque minha avó, literalmente, me programou para isso 🤷🏽♀️
Fui crescendo e nunca entendi a obsessão dela por esse cuidado (era obsessão MESMO!). Até que um dia perguntei qual o motivo daquele medo quase doentio de que eu comesse no “babujo” de alguém e então minha avó me contou essa história.
E com tristeza eu entendi…
Essa não é só a história dela, é a minha história. A história de muitos “Miguéis” que ficaram pelo caminho e sofreram, literalmente na pele, a crueldade do preconceito.
Até quando?